28 de nov. de 2008

[Conto] A hora só é a hora quando eu quiser


- Uma, por favor! – pediu o rapaz à moça da bilheteria.

Era terça feira, 22h e naquele cinema, encravado no meio do centro imundo daquela cidade, um rapaz entrava solitário na sala do cinema. A sala fedia a mofo, cigarro, pipoca velha e sexo. Era uma dessas espeluncas onde os fracassados vão. Aqueles que não têm para onde ir e que resolvem se matar lentamente vivendo solitários, drogados e desocupados.

Sim, aquele rapaz não é diferente de tantos outros que ali vão. É um desempregado que a muito saíra da casa dos pais, mas que era melhor lá ter ficado, pois lá não pagava contas. Ta certo que hoje em dia ele ainda não paga, mas pelo menos antes havia alguém pra pagar e ele não precisava ficar se escondendo dos cobradores como um rato se esconde de um gato. Mas isso esta para mudar e eu acompanhei isso, assim como acompanho tudo. Na verdade quase tudo. Não se pode estar em todos os cantos ao mesmo tempo. Pelo menos não todo mundo.

Talvez você já esteja suspeitando quem eu seja, mas se não, tudo bem, um dia nós seremos apresentados. Para alguns, isso é um desgosto, algo que vocês prefeririam morrer a ter que me encontrar. O que é estranho já que vocês só me encontram na hora da morte. Mas vocês humanos são seres estranhos. Tão estranhos que o rapaz sobre o qual vos contarei sua façanha é um dos que não vêm um encontro comigo como algo estranho, e sim como algo desejável. Seu nome era Dylan e a sua idade era o mesmo número do horário em que ele entrou no cinema naquele dia quando tudo aconteceu.

Agora que conhecemos o nome do nosso herói, ou tolo se vocês preferirem, deixem-me falar um pouco sobre ele. Dylan fora uma criança nascida em uma família com problemas. Aquela coisa de sempre. Pais jovens e viciados que não estão ligando a mínima pros filhos, e que vivem brigando. Em casa o coitado – sim, eu tenho pena de Dylan, ele sofreu muito - era humilhado pelos pais e pelos irmãos mais velhos. Até o cachorro, um velho vira-lata sarnento, era mais bem tratado do que ele. Mas a vida de Dylan em casa era uma maravilha se comparada com a vida dele na escola. Ah, a escola! Para alguns um paraíso, para outros o inferno. Talvez seja por isso que Dylan gostaria tanto de me conhecer. E às vezes, quando penso nele – sim, eu não sou uma pessoa sem coração como vocês pensam. Esse é o meu trabalho e assim como qualquer um tenho que cumpri-lo, gostando ou não – me sinto culpada por ter demorado a encontrá-lo, foram... Não, não vou dizer com quantos anos o nosso pobre Dylan morreu. Eu não seria tão má com vocês a ponto de dar uma dica de como termina a nossa história – ta vendo como eu não sou o monstro que vocês imaginam. Mas voltando, com 16 anos nosso amigo não agüentava sua vida, já chegara até ao ponto de tentar pegar um atalho e me encontrar antes, mas a vida – ou a morte como preferir – não funciona assim. Quem te encontra sou eu, e não ao contrário. Esse caso é até interessante de ser contado, porque ele mostra um dos motivos de eu sentir pena do nosso Dylan. Ele é azarado... – e um pouco burro também. Certa vez, ele tentou pular do prédio onde ele trabalhava, mas ao chegar à janela viu que ela tinha grades. Procurou feito um maluco uma chave de fendas para removê-la, tão grande era sua resignação com a vida. Mas, como eu disse, a hora só é a hora quando eu quiser. A grade não era aparafusada e sim chumbada na parede. Nosso amigo só pôde chorar como um bebê nesse dia. Hoje ele deve se sentir feliz por isso, mas vamos logo à história antes que eu conte o final sem querer.

Dylan entrou na sala do cinema.

O odor ocre queimou suas narinas.

Olhou em volta a procura de um lugar para se sentar, mas não teve que procurar muito, afinal, só deviam ter umas 10 pessoas naquela sala. Uns casais fazendo sexo lá na frente, uns drogados viajando num canto e ele.

Ele escolheu uma cadeira no meio da sala, sentou-se e tentou se concentrar no filme. – Sette Scialli Di Seta Gialla – fora como a bilheteira chamara o filme. Ao que parece era um giallo bem meia boca, mas que ao menos tinha uma atriz de quem ele gostava. Sylva Koscina.

Meia hora mais tarde Dylan acordou com alguém falando perto de si.

- Me passa a pipoca, querida.

- Não comprei pipoca hoje, companheiro. – respondeu Dylan ainda meio que adormecido.

- Como?

- Ah, desculpe, achei que estivesse falando comigo. – Dylan agora já mais acordado desculpava-se com um senhor careca sentado na fila da frente, acompanhado por uma mulher, a qual Dylan não pôde olhar direito, só podia afirmar que era loira e ponto.

Dylan esfregou os olhos, bocejou e tentou lembrar-se o que acontecera desde a hora que entrara na sala. Provavelmente dormira ao sentar-se, o que não era incomum de acontecer. Aquele cinema era visita freqüente e ele já perdera a conta de quantas vezes havia caído no sono no meio de uma sessão. O que era estranho na verdade era terem sentado tão perto enquanto o cinema estava praticamente vazio. Mas vá saber, esse mundo é cheio de estranhos e Dylan era apenas mais um deles.

22h 40 min, muito cedo ainda. A noite acabara de começar e Dylan já estava de saco cheio dela. O filme era uma porcaria. Os atores atuavam pessimamente, e até a sua querida Sylva estava numa noite péssima.

- Que droga de filme, vou pedir meu dinheiro de volta e dar o fora daqui.

Chegando à bilheteria não encontrou ninguém. O filme já começara a 40 min e supondo que ninguém mais ia querer ver essa porcaria a bilheteira provavelmente ou devia estar em algum canto se drogando ou trepando por aí.

Dylan não tinha pra onde ir. Pra casa não dava. Tinham cortado luz, água e gás. Só não haviam mandado ele próprio embora, porque ele dava um jeito de não receber o comunicado do oficial de justiça. O jeito era voltar pro cinema e tentar dormir mais um pouco. Mas antes resolveu dar uma passada no banheiro para aliviar a bexiga.

Como era de se imaginar o banheiro era imundo. As paredes todas sujas de fezes, até o teto também continha vestígios de excremento humano. – Como alguém consegue sujar lá em cima? – se perguntou. Mas ele sabia a resposta. Humanos. Sem contar os próprios vasos sanitários que pareciam mais esgotos de tão imundos que estavam. Bem, abriu o zíper e... Ta bom, vocês sabem como o negócio funciona, eu não preciso explicar.

Ele já ia saindo do reservado quando escuta alguém entrar fazendo uma barulheira.
- Vai meu garotão, tira logo essa roupa!

- Mas que droga, era só o que me faltava, um casal transando e me impedindo de sair da porcaria desse banheiro imundo e fedorento. – resmungou o pobre Dylan para si próprio.

Mas fazer o quê. Dylan era tão fracassado que não seria homem suficiente pra sair e atrapalhar o casal. O jeito era sentar no vaso e esperar. Provavelmente o coito duraria 5 minutos e tudo estaria resolvido.

- Oh! Vai, vai! Isso, querido! – aqueles gemidos já o estavam deixando de saco cheio, porque além de tudo, ele era um fracassado na cama, e aquilo só o estava deixando mais estressado ainda.

- Ai, ai, assim não, querido, ta machucando.

- Você agüenta.

- Para! Ta me machucando!

- Olha aqui sua vadiazinha, eu estou te pagando, então vai ser do jeito que eu quiser.

- Socorro!

- Cala essa boca sua vagabunda.

O barulho de tapa doeu até na minha alma nessa hora e até Dylan, covardão do jeito que era, começou a ter vontade de ser macho suficiente pra defender aquela pobre alma em apuros.

- Olha aqui sua vagabunda, se não for do jeito que eu quero eu te enfio essa faca na garganta, ta me entendendo? E é bom você calar essa matraca antes que eu me irrite.

Dylan ouviu um baque seco e viu que o homem havia empurrado a mulher ao chão. Por debaixo da porta podia-se ver sua cabeça. Rosto contra o chão e uma mão segurando com força uma cabeleira loira. Sua face estava virada para Dylan e ele podia ver que a pobre mulher chorava compulsivamente e gemia de dor.

Seja homem, Dylan! Enfrente esse covarde!

Mas é assim mesmo, esse é o Dylan que todos conhecemos, incapaz de ter coragem numa hora dessas. Provavelmente ele deve estar cagando nas calças nesse momento. Aliás, não podia estar num lugar mais adequado para estar se cagando de medo.

Esse é mais um dos motivos pelo qual eu tenho pena do Dylan. Ele é medroso.

É Dylan, esperemos mais um pouco, daqui a pouco tudo acaba. Você sai desse cubículo fétido e vai para sua vidinha fétida. Ser apenas mais um ser insignificante nesse mundo enorme.

Espera aí! Dylan, o que você está fazendo? Você esta pensando em ajudar essa pobre moça? Mas isso não é da sua conta, você nem ao menos a conhece.

Sim, amigos, nosso amigo em comum, ao que parece, resolveu mudar sua vida, criar coragem e encará-la de frente. Será que teremos alguém que fará a diferença hoje nesse banheiro dum cinema de terceira, no meio de uma cidade de quinta? Pelo visto sim, pois Dylan abre a porta de uma vez com um chute bem dado e parte pra cima do agressor.

O que chega primeiro é seu punho, que acerta o agressor em cheio no nariz. O agressor cai pra trás urrando de dor. O sangue escorre pelo seu nariz e suja o chão inteiro a sua volta. Nesse meio tempo, Dylan abaixa-se próximo da mulher e pergunta se ela está bem. Que pergunta idiota... É claro que ela não esta bem, acabou de ser violentada por um careca imundo – sim, após dar o soco no agressor Dylan pode ver que ele era o cara da pipoca, o cara que o havia acordado, o Careca. Bem que ele merecia um soco mesmo, Dylan havia pensado quando acordou, mas naquela hora não tinha coragem o suficiente, mas agora tinha.

Falando no Careca, o sangue que escorria pelo seu nariz já tinha diminuído um pouco o fluxo, e a dor lacerante que sentia ia diminuindo aos poucos. Já não o impedia de raciocinar mais.
Vendo nosso amigo prostrado junto a sua querida, ele sacou a faca, a qual havia mencionado antes, e arremeteu-se para cima de Dylan.

Quase pego de surpresa, Dylan no último momento conseguiu esquivar e agarrou-se ao Careca. Agarrados, começou uma briga de forças, onde o Careca tentava furar Dylan com a faca e, por conseguinte, Dylan tentava impedi-lo. A briga não deve ter durado nem 2 minutos, pois Dylan pisou no sangue derramado do Careca que estava espalhado pelo chão. Conhecendo o azar do nosso amigo, vocês já podem imaginar o que aconteceu. Claro que ele escorregou. E levou consigo ao chão o Careca.

- Urhg! – foi o único som ouvido além do som produzido pelo baque dos dois. Ambos ficaram imóveis. Mas por pouco tempo, porque um deles logo começou a se levantar. É amigos, vocês devem estar se perguntando quem será que foi o vitorioso nessa luta, o sobrevivente. Provavelmente, diante de toda a ineficácia já apresentada por Dylan, dificilmente seria ele, mas sim, Dylan resistiu. Ao caírem, a lâmina da faca estava virada apontando direto para o coração do infeliz do Careca.

Talvez, a única explicação possível seja o Careca ser mais azarado e mais inútil que Dylan, o que não é impossível, afinal, aquele era um cinema freqüentado por fracassados, como eu já afirmei.
A loira vendo-se segura, com sua agressor morto, arranja forças para levantar-se. Prostra-se em pé e vai ao encontro do seu salvador que também começara a se levantar.

Pois é, amigos, Dylan, aquele por quem nem eu nem ninguém daríamos um vintém furado fora o herói da noite, matara o bandido e salvara a mocinha. Teria ele agora o beijo apaixonado geralmente recebido pelos heróis no cinema? Ao que parece sim, pois ela vinha em sua direção com um sorriso ao mesmo tempo de alívio e de admiração no rosto. E enquanto na tela grande a mocinha se dirigia para beijar o herói, na vida real o fato era reproduzido.

O beijo era iminente quando Dylan escorregou no sangue que ainda se acumulava no chão. Escorregou e caiu no chão. Escorregou, caiu no chão e dali não levantou-se mais. Sim amigos, esse é Dylan, o azarado. E vocês devem estar revoltados comigo, mas é como eu disse “A hora só é a hora quando eu quiser”.

3 comentários:

  1. Muuuuuito bom!
    "E vocês devem estar revoltados comigo" seguido de um tapa na testa, haha!
    :D

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  2. caramba
    tudo isso,
    embromou uma parte do texto
    e o final é o mesmo de todos os romances.

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