26 de nov. de 2019

[Idiossincrasias/Literatura] A arca do tesouro


Quando eu era criança, na casa dos meus pais existia um móvel (que por sinal ainda existe) que era denominado como "A Arca", mesmo que na verdade ele fosse apenas uma cristaleira onde minha mãe guardava a louça que ela usava uma única vez por ano, na ceia de Natal. Na parte de baixo desse móvel, existiam dois compartimentos com portas onde os meus pais guardavam tralhas. De um lado ficavam as travessas e formas da minha mãe, enquanto que do outro ficavam os livros do meu pai. A coleção não era muito grande, nem tinha relíquias, mas para mim enquanto criança, aquilo exercia um enorme fascínio.

Dentre os livros que eu me recordo que ficavam guardados nesse móvel tinham: uma coleção da enciclopédia Barsa; uma coleção sobre personalidades históricas; uma coleção dos pensadores (que eu acabei doando pra UFPE quando me formei) e alguns clássicos. 

Meu pai sempre foi uma pessoa de gostos incomuns. Enquanto que por um lado o gosto literário e musical dele beire o erudito, ouvindo e lendo praticamente só os clássicos, por outro, o divertimento do domingo dele sempre foi ver as vídeo cassetadas do Faustão. Ele sempre ri com as mesmas piadas do Chaves, além de ter desenvolvido um gosto particularmente estranho por novelas mexicanas presentes na Netflix. 

Por causa desse gosto dele por clássicos, na minha infância e adolescência, sempre tive acesso a alguns deles, apesar de nunca tê-los lido. Dom Quixote (eu adorava ficar olhando as ilustrações do Gustave Doré), Crime e Castigo, Metamorfose, Processo, eram alguns desses livros que sempre estavam lá, que eu adorava pegar pra ver, mas tinha medo de ler. Medo na verdade não define bem o sentimento. Era mais um respeito. Como se eu não estivesse pronto, afinal de contas eram os livros do meu pai, a pessoa que eu considerava mais inteligente em todo o mundo.


De todos os clássicos que meu pai possuía, ele parecia ter uma predileção pelos de Dostoiévski e de Kafka, e talvez por isso, sempre tenham sido os autores que eu mais tive receio de ler. Ambos eu até tentei ler na minha adolescência, mas abandonei. Mais pelas edições que estavam velhas e fedendo a mofo, do que efetivamente por não ser capaz de ler. Fato é que eu nunca tinha lido nenhum dos dois.

Nesse ano de 2019 eu descobri que ia ser pai, e na minha mente veio a ideia fixa de que eu precisava ler esses dois autores, uma vez que meu pai tinha lido. Então pra ser pai era preciso ter lido Dostoiévski e Kafka. Não faz o menor sentido, mas na minha cabeça fazia. 


Kafka foi uma leitura mais tranquila. Em duas sentadas eu li Metamorfose. Durante minha vida toda tinha ouvido de diversas pessoas que Kafka era muito difícil, que era chato, etc. E muito pelo contrário, achei a leitura muito prazerosa e até bastante acessível, apesar de ter muito nas entrelinhas. Agora vencido o medo, acho que vou dar chance aos outros títulos do autor.

Já Dostoiévski não foi tão tranquilo pra mim. A leitura de Crime e Castigo se arrastou por quase 6 meses. Tive que recomeçar quando já tinha lido quase metade do livro porque não estava entendendo mais nada. Mas talvez a culpa nem seja do livro, e sim do meu tempo de leitura que estava bem comprometido nesse período. No fim, achei o livro bom. Talvez por já conhecer a história (esse é daqueles livros que mesmo sem ler você tem a trama toda na cabeça), não foi tão impactante pra mim. Mas ainda sim fiquei feliz de ler.

Pode ter sido loucura da minha cabeça ter me colocado essa obrigação, mas o fato é que minha esposa passou uma semana com 3 cm de dilatação, e no dia seguinte ao término da minha leitura de Crime e Castigo meu filho nasceu. A maioria das pessoas vai dizer que foi só coincidência, mas pra mim ele sabia que pra eu ser um bom pai eu teria que ter terminado esses clássicos.